É um
tipo de linguiça esse tal de escudiguim que, na minha família, tem o apelido saboroso
de cudiguim.
Era especialidade
da minha mãe.
Foi
na sexta que encuquei que iria fazer escudiguim igual ao da minha mãe! E ela me
incentivou (sinto como certa a minha conexão com ela). Confesso que até me preocupei
com a pressa que percebi nesse incentivo! Será que estou com
pouco tempo por aqui? Acho que não. Ela ela era mesmo imediatista...
Minha
mãe foi uma senhora cozinheira! Meu Deus! Uma simples abobrinha refogada feita por
ela era de lamber os beiços. O segredo está em escolher os ingredientes certos,
dizia ela. E eu sabia que essa tal linguiça que se cozinha no feijão só presta
se for feita com a barriga do porco. Ouvi isso muitas vezes.
No sábado,
já acordei com um grilo empurrando-me pro mercado. Mas, só pude ir à tardinha.
E não achei a tal barriga de porco.
Passou
o domingo, a segunda já estava seguindo seu curso, e eu dei uma cochiladinha,
de leve, logo após o almoço. Bem leve. Uns 20 minutos. Acordei sabendo aonde ir:
ao mercado, comprar barriga de porco (também conhecida como fraldinha). O
açougueiro tinha dito que chegaria na segunda, à tarde.
Comprei logo 4 quilos. E pedi pra separar a pele. Em casa,
pus a pele para ferventar em água com sal, até amolecer um pouco e ficar fácil
de cortar, em pedacinhos.
Separei
a carne e a gordura e piquei tudo. Também em pedaços pequenos. Usei três partes de
carne; duas de pele e uma de gordura. Tudo picadinho.
Temperei
com sal, cobri e reservei. Deixei sobre a pia, por uma hora, e, então, pus na
geladeira. Só peguei, novamente, no outro dia, à tarde.
Sem
medo de ser feliz, em contato com o passado, quando, ao lado dela, fazíamos a
iguaria, fui retomando os ensinamentos: não pode moer; tem que picar. Nem tente
fazer na máquina; tem que empurrar a mistura, no funil, e ir enchendo a tripa,
com cuidado...
Na
terça, de manhã, descobri que as tripas que eu tinha já eram. Claro! Eram ainda
do tempo da minha mãe viva. Pedi, então, ajuda da nora Yanne. Ela comprou um
pacotinho com dez metros e trouxe pra mim.
Aqui,
abro parênteses para voltar aos meus 8 até 12 anos, quando a minha história
registrou minha mãe lidando com capado esquartejado sobre a mesa da cozinha, lá
na minha terra natal. Ô saudade! A primeira prazerosa investida pra matar a
ansiedade de degustar as gostosuras que, magicamente, sairiam do porco
transformado era o suan. Huuummmm E ela ainda fazia pernil assado. E carne de lata, na
banha. E costelinha com mandioca... Saudade é palavra insossa pra essa
nostalgia do paladar que a memória da criança nunca vai deletar.
Só não
gostava de ver minha mãe limpando as tripas. Um espetáculo horroroso!
Malcheiroso! De dar engulhos! Depois que ela se livrava do “recheio” (raspando
com as costas da faca), ainda lavava muitas vezes. Virava do avesso, lavava; e
revirava as tripas, e lavava... Depois, deixava de molho, com bastante limão.
Umas boas cinco horas. Escorria a água, salgava bem, punha numa peneira e
deixava secar ao sol. De leve. Se passasse do tempo, podia jogar fora, pois,
quando fosse fazer a linguiça, apareciam furos; e adeus a todo aquele trabalho...
Pensava
cá comigo “nunca que vou fazer isso de lavar e preparar tripas!”.
Pois
com a solução do assunto tripa resolvido pela minha norinha, arregacei as
mangas, prendi cabelo, respirei fundo e imergi no passado, nos cenários todos
do passado, nas cozinhas do nosso convívio, onde a companhia da minha mãe era a
garantia que o resultado seria supimpa. Com a confiança de mãos dadas com os
ensinamentos, comecei os trabalhos...
Avaliei
que não usaria todos os dez metros tripa. Separei um pouco. Lavei pra retirar o
sal. Pus de molho em água com limão e reservei.
Retirei
a mistura que estava na geladeira, desde o dia anterior, e fui colocando quantidades
pequenas dela (modernidade!), no meu processador (liberdade de criação! minha mãe picava
miudinho – sem máquina - e pronto).
Bati,
de leve, para alguns pedaços ficarem inteiros. Atenta porque precisava que
outros resultassem amassados, para promover a compactação fácil da carne, com a
pele e a gordura.
Até
aqui, só sal, na mistura.
No
tempo da minha mãe, ela separava a minha porção (não posso comer alho) e, no
resto, carregava a mão nos acréscimos (alho; cebola; cebolinha; salsa;
pimenta-do-reino)...
Destaco
que só acrescentei cebolinha que a norinha trouxe e processei com a última
porção de mistura que bati.
Mistura pronta, hora de fazer a linguiça.
Confesso
que tentei encher com o funil, empurrando com o dedo indicador. Não consegui! Não comprei
o funil certo (ainda bem!). Apelei, então, para a máquina elétrica de moer (modernidade 2).
Foi
até rápido. Teria sido mais se eu tivesse separado a gordura fibrosa. Ela
emperrava a máquina, ao enroscar-se na última peça, já na saída, com a mistura
preparadinha para ser recheio delicioso de tripa.
Quase me esquecia de contar que tem um pulo do gato! Pois é, tem! E é o espinho da
laranjeira.
Ao decidir o tamanho de cada linguiça, após amarrar as pontas,
precisa fazer furinhos esparsos, na tripa recheada. Pra quê? Para que, na hora
de cozinhar, a linguiça permaneça inteira e a tripa não arrebente...
Ficou
bonita a danada da linguiça exibida.
Guardei
na geladeira.
Hoje
foi o dia de testar a iguaria.
Numa
panela de pressão, cozinhei feijão.
Na
outra, com pouca água e pouco sal, cozinhei a linguiça.
Quando
o feijão estava quase cozido (assim que se passaram cinco minutos que a panela
com o escudiguim pegou pressão, desliguei e reservei), abri as panelas, e
despejei o feijão sobre a linguiça. Restou uma panela, portanto. Ainda deixei
mais um tempo, no fogo; o suficiente para que o feijão cozinhasse.
Experimentei
o sal.
Pronto!
Foi
uma alegria sem tamanho chegar ao término da receita e saborear o escudiguim
feito sob a supervisão da memória da minha mãe.
Minha
mãe tão linda mora em mim. Seus ensinamentos são meu tesouro. Olho no espelho e
pergunto como posso ser assim tão ela...
E sou só agradecimento.
Preciso
contar que ficou maravilhoso?
Quando
eu fizer mais, convido você que curtiu e ficou com água na boca, com vontade de fazer parte
da festa.